AUDION "SUCKFISH"
Desde que Abe Duque interrogou-se (em "What Happened?") sobre o estado lastimável em que se encontra toda a cena techno e house, tenho meditado sobre a forma que como o mercado tem tratado toda uma cultura, como a forma que os protagonistas dessa mesma cultura têm lidado com o mercado, revelando pouca lealdade com o espírito que instaurou-se em finais de 80. Já não se procura na cultura techno-house, o escape para uma realidade paralela onde a evasão dos terrenos comuns, a fuga da realidade quotidiana ou a mutilação de clichés pop era considerado uma prerrogativa. Hoje todo o movimento rendeu-se à lógica do mercado, a música perdeu o valor intrínseco, a capacidade de desafiar não só corpo, mas também a mente. Perdeu a capacidade de desafiar-se a si mesma. O consumo desmesurado obrigou a uma produção disparatada, avulso e sem ponta criativa que desperte os valores por detrás dos ensinamentos concebidos à quase 20 anos atrás em cidades como Detroit ou Chicago. A cultura actual pretende essencialmente criar estrelas que possam cintilar ao lado de outras vedetas que a pop venera. Nada mais conveniente para um mercado que quer rentabilizar qualquer ideia nova que saia do tubo de ensaio, tardando a evolução (senão mesmo evitando-a) até o óbito ser declarado, sentando-se de seguida à espera da next big thing.
Nesta temática, a indústria parece ser a única com objectivos definidos, porque o underground, que sempre foi o laboratório onde a matéria tomou forma, parece resignado e inerte. A força de "Homework" dos Daft Punk pode ter criado um paradigma, mas o revivalismo pop anos 80 na cena electrónica não trouxe nada que desafie verdadeiramente o estabelecido, antes pelo contrário, instigou a vontade de muitos em quererem ser vedetas à imagem dos maneirismos de 80.
As excepções têm vindo da Alemanha (Kompact, BPitch Control) ou Estados Unidos (Ghostly International/ Spectral Sound), onde editoras independentes têm contrariado o aparente deserto de ideias com o qual toda a cultura techno-house tem aprendido a sobreviver. Depois da promessa de morte do rock em meados de 90, parece ser a vez do techno ou do house... Sim, porque neste momento a luta começa a parecer-se mais com uma sobrevivência.
Folgo em saber que há quem trabalhe para contravir o marasmo instalado e Matthew Dear é um dos mais esforçados jovens a contrariar a ociosidade. O seu percurso tem
sido relativamente discreto, mas o seu trabalho na área do techno minimal tem sido merecedor dos mais elevados elogios, podendo o seu nome ser incluído no meio dos grandes do techno actual como Thomas Brinkmann, Ricardo Villalobos, Michael Mayers ou Superpitcher. Os seus recentes trabalhos como mini álbum "Backstroke" (2004), assinado com o próprio nome ou a edição de uns quantos maxis (ora assinando Matthew Dear, Jabberjaw, False ou Audion) em etiquetas como a Perlon, Minus ou a Plus 8 de Richie Hawtin, tem lhe trazido algum reconhecimento no meio.
A música de Dear tanto pode divagar pelos territórios minimais abstractos onde a pulsação das maquinas marcam cadência à sua visão pop de vanguarda, como é o caso de "Backstroke", como pode preferir o hipnotismo que torna todo melómano vitima do ritmo robusto desenhado para as pistas de dança; e é disso mesmo que se trata o seu projecto Audion. Enquanto "Backstroke" preferia a introspecção, "Suckfish" é extrovertido. Ele não consegue ocultar o objectivo pelo qual veio ao mundo: fazer dançar e colocar simultaneamente a mente num transe onde o mundo é visto através de um caleidoscópio, como a própria capa faz questão de lembrar. O techno tanto é despido a um nível esquelético, como em boa parte das vezes é recheado por sub-baixos que entorpecem a mente, por sintetizadores que carregam o corpo de energia e êxtase, por ritmos sólidos e vigorosos, por melodias carregadas de acidez suficiente para dissolver qualquer ócio.
O techno volta ao seu meio de predilecção: o laboratório. Volta a ser capaz de surpreender académicos, de ser vítima de dissecação e estudo. O espírito primordial vive através de uma geometria sonora traçada por máquinas, ele ergue-se, soltando-se de amarras, surpreendendo e fazendo-nos acreditar que um futuro esmorecimento ainda não chegou.
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